É cantarolando o refrão de uma música que fez sucesso no fim dos anos 70 — chamada “A Little Lovin' (Keeps The Doctor Away)”, da dupla The Raes — que Weber Luiz de Avellar, 82 anos, leva a vida. A canção diz: “um pouquinho de amor mantém os médicos longe”. O engenheiro civil que “só pretende se aposentar quando morrer” acrescenta o “everyday” à frase, ou seja, “um pouquinho de amor todos os dias mantém os médicos longe”. Weber trabalha com projetos, estuda, sabe tudo de computador, tem uma imensidão de amigos e sonhos, entre eles aprender francês. Em Paris. Ele e outros 1.499 idosos paulistanos integram uma iniciativa que une o Centro de Estudos do Genoma Humano, da USP, e o Hospital Albert Einstein, cujo objetivo é criar um banco de dados composto por genética e medicina para desvendar por que umas pessoas envelhecem melhor. Resultados preliminares, baseados na observação dos cientistas, revelaram que atividade intelectual, otimismo, sociabilidade e solidariedade estão associados à longevidade com qualidade de vida, “mostrando que o ambiente talvez seja tão ou mais importante do que a genética”, diz o biólogo Michel Naslavsky, um dos coordenadores do estudo, idealizado pela geneticista Mayana Zatz.
— O objetivo principal é conhecer a genética e o funcionamento cerebral de quem envelhece saudável, particularmente do ponto de vista cognitivo. Essas pessoas serão uma referência para a população e poderão contribuir para o conhecimento das bases biológicas do envelhecimento — explica Naslavsky.
Weber ficou viúvo em 2010 após 60 anos de casamento. Diz que dribla a saudade da esposa com otimismo e que quer se casar de novo:
— Namoro muito, mas pelo computador. Um dia espero encontrar a pessoa certa.
Cérebro em forma depois dos 80
Enquanto a futura mulher não vem, o engenheiro encontra os amigos no clube e no Parque do Ibirapuera, onde pilota seu helicóptero de brinquedo, por controle remoto. Caminha ao menos 4 km por dia e segue uma alimentação saudável. Não tem medo da morte.
— Se estiver bem de saúde, quero viver até os 120 anos, gosto da vida.
Gostar da vida, segundo Naslavsky, é a principal característica dos 100 idosos do projeto “80mais” — todos bem de saúde, especialmente em suas funções cognitivas. O cérebro deles já foi analisado num exame sofisticado de ressonância 3T, realizado no Einstein. Os cientistas recrutam voluntários pela internet e o genoma de cada um é sequenciado (quase sempre nos EUA), com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Weizmann Institute of Science em Israel. Os custos do sequenciamento genético de um indivíduo caíram dos US$ 3 bilhões em 2003 (quando se conseguiu sequenciar o DNA humano pela primeira vez) para US$ 4 mil. Mas no Brasil, com os altos impostos e a burocracia, o valor é mais alto, o que justifica o envio do DNA para os Estados Unidos.
Navegando num mar de informação
Além dos 100 idosos com mais de 80 e as funções cognitivas em dia, outros 1.400 maiores de 60 anos participam do estudo. Esses podem estar bem fisicamente ou não, e sua saúde vem sendo acompanhada desde o ano 2000 pela Faculdade de Saúde Pública da USP, num projeto conhecido como SABE (Saúde, Bem-Estar e Envelhecimento), cuja participação foi baseada em dados do Censo do IBGE.
— A ideia é cruzar todos os dados de 1.500 pessoas. Vamos analisar como são os hábitos e a saúde das pessoas com mais de 60 anos de São Paulo. Vamos criar um banco de referência genômica de pessoas que já chegaram aos 80, 85, 90 de forma saudável. Daí teremos uma bela referência comparativa com todo o resto da população. O valor científico disso é inestimável e pode ter funções terapêuticas no futuro — salienta Naslavsky, lembrando que, além de ajudar no prognóstico de doenças, o DNA dos idosos já é usado em estudos que, por exemplo, buscam marcadores para outras enfermidades, podendo auxiliar seu controle no futuro.
Mayana Zatz, uma das maiores geneticistas do país, da USP, explica que uma das metas da pesquisa é dar significado às milhares de variações genéticas encontradas todos os dias. O sequenciamento mais acessível do DNA despeja nas mãos dos cientistas literalmente milhões de novas informações. Trabalhos como esse contribuirão para identificar os genes e suas variações que fazem a diferença entre doença e saúde, chegar aos 100 ou morrer precocemente em função da falhas no DNA, com impacto no trabalho dos médicos e na vida dos pacientes.
A genética é parte fundamental do estudo, mas a análise do cérebro guarda a mesma relevância. Há gente com mais de 80 anos com “cabeça de 50”, brinca Naslavsky. Literalmente, mostraram as ressonâncias. A conectividade dos neurônios, a memória, a ligação entre uma região e outra.
Certamente é o de Hebe Leme, 89 anos. Antropóloga e socióloga aposentada pela USP desde 1982, Hebe adora não precisar mais trabalhar para se dedicar à sua maior paixão: a leitura. “O sonho do celta”, de Mario Vargas Llosa, foi o último, leu a obra em dois dias. Além disso, sai com as amigas (“o mais difícil é ver tanta gente indo embora, esta é minha dor”), vai ao cinema, viaja (“de quatro anos para cá só pelo Brasil, mas antes ia para tudo que é canto”) e vê muitos filmes em DVD. Os favoritos são os de Ingmar Bergman. O medo da morte inexiste. E, tirando a dor de perder parentes e amigos, diz que é feliz no presente.
— Precisamos cultivar o aqui e agora. A única coisa permanente neste mundo é a impermanência — filosofa.
Seria interessante se, por meio deste estudo, os cientistas descobrissem genes associados ao otimismo. A longevidade de Elza Maria Zequi, 69 anos, estaria associada a ele. Há 14 anos ela cuida do marido doente, que tem os males de Parkinson e Alzheimer.
— Me dá prazer cuidar dele porque ele foi um ótimo pai para os meus três filhos, que me deram quatro netos — conta Elza, que adora ir ao cinema, fazer crochê, sair com as amigas e ainda arruma tempo para fazer trabalho voluntário.
Segundo Michel Naslavsky, Elza é uma forte candidata a passar dos 80 com uma “cabeça boa”.
O Globo
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